O Sonho

...Estávamos ali, finalmente! E, da elevação em que nos encontrávamos, o solo ocre e terraplanado da represa em construção se descortinava diante dos nossos olhos. Observamos os contornos, a topografia, o sinuoso regato que atravessava o terreno em meio ao rebuliço de homens e máquinas — alheio, desapercebido de sua importância naquele contexto. Mesclávamos as observações com as evoluções graciosas dos voos de uns quero-queros...

Mal contínhamos o entusiasmo de ali estarmos, ansiosos por nos tornarmos parte daquele cenário...

Havíamos sido contactados e contratados para, com pedras em sistema de gabião, forrar o fundo e as paredes do reservatório das bombas de sucção. Depois de nos apresentarmos, combinar detalhes, vistoriar o local, os materiais e as ferramentas, e de conversarmos com alguns operários, seguimos para o alojamento.

Jantamos na cantina, especulamos com os trabalhadores sobre o andamento da obra, assistimos a um pouco de TV e nos recolhemos ao dormitório, onde ajeitamos o melhor que pudemos nossas coisas e nos deitamos sobre os colchões que nos foram fornecidos. Ainda conversamos um pouco, sobre a obra e banalidades, até que, envolvido pela letargia, acabei adormecendo...


Sonhei, então, que me encontrava no interior e no convívio de uma casa que me parecia familiar. Tudo transcorria normalmente, como num cotidiano já conhecido, quando algo incomum e estranho começou a acontecer — e um temor, uma inquietação, foi se espalhando pelos cômodos.

Uma garota da casa se aproximou de mim, aconchegando-se — talvez buscasse proteção. Senti um princípio de excitação, e foi então que tudo começou a balançar...

Procurei a saída, mas já não vi mais a garota. Na varanda, o teto sacudia.

Era noite. Saí caminhando por um descampado salpicado de arbustos e vi pessoas olhando para o céu. Pareciam atônitas. Olhei na mesma direção e vi um disco enorme, repleto de luzes que giravam sobre si mesmas. Logo surgiram outros — diversos —, e enquanto eu caminhava trôpego, senti que o chão começava a faltar sob meus pés.

Foi quando o Marcelo apareceu correndo e estendeu a mão. Eu a segurei — e subimos... Levantando voo, levitando...

Me vi com ele, de repente, no interior de uma cabine ovalada. Encostamos na parede. À nossa frente, no centro da cabine, havia uma poltrona reclinada com painéis à sua volta — estava vazia.

Olhei para o Marcelo e disse:
— É do piloto... não mexa!

Tornei a olhar para a poltrona — e eles estavam lá.

Assentado na poltrona reclinada, o piloto. Encostados na parede oposta, dois outros tripulantes também estavam sentados. Só então percebi que nós também estávamos sentados, e — à exceção de um detalhe — eram exatamente como nós.

O pulso direito do piloto consistia numa espécie de gôndola metálica, achatada e elástica, mas os movimentos de sua mão pareciam normais.

Olhamo-nos. E o rosto que fixei entre eles transmutou-se, de repente, em uma intensa simpatia. Senti-me perfeitamente à vontade — e falei. Falei aos borbotões, como quem rompe um dique de palavras represadas.

Falei da ideia que se fazia na Terra sobre a aparência deles, da natureza das observações que eu vinha fazendo. Falei de como tudo parecia se agrupar e se organizar dentro de um esquema maior.

Falei das cores, dos sons, dos volumes, das texturas, dos formatos, dos odores e dos sabores. Falei dos reinos da natureza, de como tudo parecia esquematizado em famílias — e se assemelhava em toda parte.

E então... acordei.


(Obs: o sonho foi de muita clareza e me deixou pensativo, de modo que resolvi intentar continuá-lo e desdobrá-lo em ficção.)


                                                                         A Ficção                                                                                                                                                                        

Havia algo de surpreendente na dinâmica das luzes. Começou assim — sutil — e, embora o ambiente em si permanecesse estático, ao redor tudo se percebia como um turbilhão crescente e contínuo.

Passou-me pela cabeça que eu estivesse no interior de um poderoso dínamo — e que este se encaminhava para um desfecho irreversível...

E então aconteceu.

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Foi assim — um flash gigantesco.

Me vi projetado numa espécie de turbilhão... Um mergulho interminável. Cores, formas, sons — tudo passava e sibilava nos meus sentidos, e também na enorme tela que, do nada, apareceu diante de mim.

Vi formas conhecidas — e desconhecidas — da Via Láctea... Vi artefatos vagando no espaço... Mundos... Mundos. Cenas do presente, do passado e outras que intuí, futuristas.

Vi homens trabalhando, torres incipientes na forma de zigurates sendo erguidas. Vi guerras — e mais guerras —, e todo tipo de exploração.

Vi a nobreza se erguendo entre os plebeus e, em seguida, se dividindo em partidos. Vi os plebeus digladiarem-se por causa desses partidos — e esquecerem-se de seus próprios direitos.

Vi a sociedade se estabelecer, e para alguns tudo parecia significar... enquanto para outros — nada.

 Vi a planície de Gizé envolvida como por enorme formigueiro e na base de  sustentação de tudo  estava o povo comum...

Vi a Mesopotâmia... os sumérios... a sucessão de impérios. Vi acádios, assírios e caldeus. E, dentre outros povos, vi os gregos, os persas e os romanos.

Vi os orientais... e Gengis Khan. Vi Napoleão Bonaparte, o Novo Mundo, e os povos primitivos. Vi o filósofo, suas teorias — e um mundo dividido.

Em suma, desigualdades foi o que vi.

No interior de cavernas, vi botijas que continham pergaminhos. E, nos pergaminhos, havia um roteiro — salpicado, fragmentado — que, ao imprimirmos, tornava-se para cada qual o próprio alfarrábio.

E, desse modo, passo a passo, moldávamos a civilização.

Vi um rei enfurecido — e uma harpa a acalmá-lo. E, nas brumas de En-Dor, vi Samuel... e um vaticínio.

Vi Davi a vaguear pelos campos... e um templo que se erguia.

Vi a magnificência do rei Salomão extrapolar os limites — e alastrar-se pelos povos.

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À guisa de um farol, eu vi uma estrela — e, na sua esteira, um caminho real.

Vi um monte. E sobre o monte, jorrar a fonte.

Depois vi uma mesa. E, sobre a mesa, o pão, o peixe e o vinho.

Em seguida, vi um cordeiro... uma pira... e o holocausto.

Da página de um grande livro, eu vi uma fumaça que subia — depois se condensava — e, feito cortina, rasgava-se de cima abaixo.

E então, um outro tempo surgia...

Na verdade, eclodia — das catacumbas, dos porões — e irradiava da base... do submundo social de uma pirâmide impiedosa.

Das sete colinas, ouvi um bramido — e vi estender-se, em todas as direções, o cetro.

Vi alargar-se, na Grécia, o espírito — e Alexandre retroceder diante do barril...

Nas páginas do grande livro, eu vi o tempo — e, na lousa dos tempos, conjugar-se um destino:
Mene, Mene, Tekel, Ufharsin.

Mas qual lógica teria o sonho, se de um momento ali se está — e, de outro, já não?

O corredor parecia um tubo grande, ovalado. Olhei para os lados à procura do Marcelo... e já não o vi.

Pessoas iam e vinham. Portas se abriam — também nas laterais — e outros passavam.

Acompanhei de perto um grupo que me pareceu simpático. O corredor espiralava, subindo, e eu segui, passo a passo, até dar numa área ampla, aberta, imensa — recoberta por uma abóbada transparente e luminosa.

As vias principais convergiam para o centro, enquanto ruelas transversais espiralavam, conectando-se a edifícios. Tudo ali parecia tender — como num vórtice — para um colossal edifício em forma de hexágono, que, no topo, tocava a abóbada — como se ela mesma derivasse dele.

Veículos e plataformas, que não tocavam o chão, transportavam pessoas e pareciam se magnetizar às vias, deslocando-se por frequências.

Absorto, demorei-me contemplando.

Na cúpula, naves de formatos e tamanhos diversos — ora chegavam, ora partiam.

E embora fosse um sonho... eu fiquei maravilhado.


                                                                                           

   Dei-me conta, a certa altura, de estar muito longe...

E então, retrocedi.                                                                                     
         
ucromatico.blogspot.com

Tomando o caminho de volta, caminhei celeremente em busca do portal que havia adentrado, mas, por mais que procurasse, não o encontrei. Decidi então parar e pedir ajuda. Olhei ao redor e, numa esquina, vi um grupo que conversava alegremente. Caminhava em direção a eles quando observei, numa das confluências de nível, em canteiros — dos muitos que existiam sobrepostos — pessoas em torno de cultivos, trabalhando. Algumas portavam aparelhos que formavam um verdadeiro aparato. Um deles, que me pareceu mais simpático, podava com extremo cuidado uma espécie exótica, que me pareceu uma roseira.

Dirigi-me até ele e o cumprimentei. Ele olhou e acenou com a mão. Eu disse que gostava de plantas e que aquelas, embora tivessem algo familiar, eu não conhecia. Ele olhou para as plantas, depois para mim, e sorriu. Parecia ter uns sessenta anos, embora seu aspecto fosse jovial. Tinha belos dentes que se misturavam aos olhos quando sorria.

                                                                                                               
Danielle Camargo Blog

     E enquanto eu, com os dedos, examinava a textura — lembrava o grafiato — das pétalas de uma flor de aparência exótica, ele disse:

— A diversidade me encanta!

Explanou a mão cerca de 90 graus sobre os canteiros, na direção do horizonte.
— No desconhecido, procuramos traços de um roteiro que nos possa conduzir ao princípio de todas as coisas. A razão do sentimento de familiaridade que você experimenta é porque esses traços estão em toda parte, inclusive em nós...

— E quando, no princípio... acaso chegássemos? — arrisquei. — O que iríamos deparar?

Ele riu, cofiando o bigode, e respondeu com uma outra pergunta pitoresca de seu velho mundo:
— O ovo ou a galinha... o que veio primeiro?

Rimos.

Apontou para as ruelas e disse:
— São tantos os caminhos quanto opiniões e teorias. Entretanto, por mais que esbarrem em princípios, uma incógnita logo aparece...

Caminhou até o grupo que recolhia resíduos, examinou o material, deu instruções e foi de um canto para o outro até se deter com um jovem que fazia anotações, demorando-se com ele.

A Estação — ou seja lá o que fosse — além de admirável obra de engenharia, era uma obra de arte, onde a estrutura metálica se fundia às rochas trabalhadas, que se encaixavam umas nas outras, interligando setores e constituindo a base do complexo. O espantoso era a naturalidade que transcendia tudo, de modo que uma pequena fonte brotava no jardim principal como uma nascente, e dali serpenteava, desenvolvendo um pequeno curso salpicado de corredeiras e primorosas cascatas, até se fundir nas rochas...

Nada era desperdiçado ali; reaproveitar era a palavra de ordem, em total acordo com as leis da natureza.

              institutomauriciodenassau.com.br

   Com o retorno de Max — denominemos assim — acompanhado do jovem da prancheta, Gabriel, pude compreender melhor a natureza do projeto: uma iniciativa espalhada em diversos polos, parte de um grande esforço coletivo. O mais interessante é que, apesar da ciência avançada, primava pela simplicidade... Tudo era recolhido e catalogado, e, por meio de substratos e adubos, a energia produzida regulava nas estufas a iluminação e a temperatura, de acordo com a necessidade de cada cultura. De modo que, em parte, a biomassa auxiliava no sistema.

— Nas leis e princípios da natureza — explicou Max — encontram-se as chaves da ciência. Conhecê-las e aprofundar-se nelas, em prol do bem comum, é o propósito que compartilhamos.

                                                                                                         fara-night.blogspot.com

            

  Enquanto recolhíamos amostras, Max afirmou:

— Nada existe de novo... O que foi, ou ainda será inventado ou descoberto, já se encontra em estado latente na natureza.

Apontou para a rocha, onde sob o reflexo da luz parecia tremular a imagem da água.

O jovem Gabriel, taciturno e prestativo, com sua cabeleira farta e negra e nariz adunco, fazia-me lembrar de certa gravura inca ou maia que vira há tempos...

           mundoeducacao.uol.com.br


 ( o texto como disse antes bartnou se acidentalmene e tento de memória reconstitui-lo está orrivel este rascunho)

Do micro ao macro, é numa dualidade que tudo se reproduz, nas espirais do movimento e em princípios que a tudo entrelaçam através de circuitos.
— E que circuitos são esses? — perguntei.
Ele disse: — Olhe dentro de si... o que vê?

Respondi: — Um campo... talvez.

— Fale-me desse campo — pediu ele.

Pensei, e disse: — É inconstante e imprevisível... Por vezes parece obscuro, limitado, ou se torna maleável, estendendo-se. Percebo forças que se contrapõem num embate e me arrastam; isso vai da brisa agradável ao temporal violento. Penso que são os humores, e tento me situar... Por vezes, beiro o conflito e ajo como se fosse um náufrago que estende as mãos e tateia.

— Que forças são essas? — perguntou.

Eu respondi: — O medo, penso eu. As incertezas... daí vêm o ego, a libido, as frustrações, o desconhecido, o desconhecido...

Sei que tenho melhorado muito desde que, ao invés de me queixar, decidi encarar de vez esse campo e aceitá-lo — campo que, até então, se tornara um ermo triste e desolado.

Por um tempo, tentei entorpecê-lo com miragens que, por se esvaírem, exigiam outras e sempre mais, para que o contraste não viesse à tona — até que se tornaram uma brutal necessidade.

— Não foi fácil, e nem tem sido — disse. — Senhor Max exemplifica bem a imagem do náufrago que, em meio à inclemência, se agarra ao escolho e, pelas trevas envolvido, vislumbra um farol... Titubeia... e depois arrosta-se, braçada a braçada, com os braços cansados, em sua direção...

Enfim, esse campo quase inóspito era meu, e eu cumpria cultivá-lo, tomar posse. Entretanto, entulhado como estava e tomado por ervas daninhas — enfim, pensei: “O joio da passagem bíblica” — devia retirá-lo e afofar a terra, depois escolher da boa semente para semeá-lo.

Imbuído de bons propósitos, comecei a vistiá-lo. Aqui e acolá dava com uma plantinha boa, mas mirrada, quase sufocada... um recanto atravancado, uma fonte conspurcada e um regato poluído. Era tudo o que tinha, e muito trabalho pela frente.

Arregacei as mangas, e por mais joio que eu retirasse, logo rebrotava. Persisti, afinal era meu campo e ali, eu bem sabia, encontrava-se a minha Canaã... Decidi tomar posse.

E de lá para cá, à medida que a naturalidade seguia, tenho me esforçado para melhorá-lo: desentulhando, afofando e semeando. Em meio à reincidência que notei, ela se torna paulatinamente mais fraca e esparsa. Enfim, do ermo quase inóspito, pode-se dizer que já toma uns ares de recanto aprazível.

— Vini, vidi, vici — Max riu. — Tal façanha foi de pronto...

— Não foi isso que quis dizer — respondi. — Só busquei um rumo e procuro me situar... Oponho, de certo modo, resistência. Quanto ao ego e à libido, pedi ajuda a Deus para, em relação a essas forças, não exercer domínio, não sufocá-las, por entender que, na medida certa e bem direcionadas, são indispensáveis; assim como, em razão da prudência, o medo.

Disse-me então que esse campo — o meu — em níveis e graus diferentes comunicava-se com os demais, interagindo através de circuitos que se diferenciam na diversidade.


     continua...
       meupapeldeparedegratis.net


         ADENDO

(Confusão mental, audição de vozes e internações psiquiátricas) — A razão da introspecção no texto e a intenção são a possibilidade de conviver e administrar internamente transtornos dessa natureza — e muito bem. De modo que, se alguém der com esta página, ler e coincidentemente sofrer com tais episódios e perturbações, não se desespere. É possível conviver — e muito bem — com isso. Caso esteja em tratamento, não o abandone, tampouco os remédios. Afaste, sim, o medo em primeiro lugar e exercite mentalmente, à medida que aconteçam, a negação dessas vozes desagradáveis, incessantemente, se preciso, com firmeza, determinação e fé. No começo, o embate é difícil, mas com o tempo arrefece, tornando-se mais fácil até que se estabeleça um relativo controle.

As vozes são, em parte, acredito eu, produto de medos, anseios, frustrações, culpas, desejos reprimidos, inadequações e monólogos mentais introspectivos no rescaldo de uma vida solitária... Dentre outras coisas, podem se compor com fragmentos da memória. Pode ocorrer também fenômenos telepáticos e espirituais. Entretanto, o que importa, nesses casos, além de se buscar a ajuda de um médico, é afastar o medo, encarar com naturalidade e nunca aceitar ou assimilar essas vozes como comandos. Deve-se, desde o começo, com o medicamento necessário e sob supervisão médica e ajuda de familiares, enfrentar o problema e, paralelamente, exercitar o autoconhecimento com informações e leitura. Se for caso de consumo de drogas e álcool, inclua nisso o abandono do vício, busque ajuda, lute contra ele, porque mais vale ter saúde. E, com o tempo, pode ser que o consumo de remédios diminua ou, assim como eu, quem sabe, deixe de necessitar.

Voltando e de continuidade a ficção

Continuamos a caminhar. De quando em quando, recolhíamos amostras que Gabriel, depois de catalogar, acondicionava em espécie de saquinhos... Atravessamos estufas e, pouco além, deparamos com arbustos silvestres e pequenas árvores que foram adensando até se tornarem um pequeno bosque. A não ser pela estranheza das espécies, tudo aparentava uma savana, onde pude observar alguns exemplares da vida animal, assim como insetos e pássaros. 
Giz cera

      Soube que efetuavam pesquisas de campo nos limites das condições naturais, com a finalidade de reproduzir, nessas mesmas condições, micro sistemas. O objetivo era, por meio de estudos e observações, tentar compreender a conjunção de fatores e elementos que, no cosmos, dispuseram os primeiros canteiros — como se diversificaram, desenvolveram-se em cadeias que se entrelaçaram, expandindo-se ao mesmo tempo em que se limitavam, estabelecendo um movimento perpétuo.
Saulo (pintura a óleo "leigo" no assunto)

       Gabriel, ao mesmo tempo em que me instruía com detalhes, perguntou sobre a terra... Respondi-lhe, num apanhado, o esboço sofrível — ou tentativa — que pudesse dar uma ideia da terra, suas particularidades e problemas... Gabriel usava, em parte, um couro de uma espécie de ave — creio eu, primitiva — confeccionado em duas peças e adornado com penas e plumas. A parte de cima, aberta na frente, deixava transparecer uma tatuagem de ave em pleno voo sob um sol — o símbolo do seu povo, disse-me ele. Contou também que habitavam o interior da floresta, sobre as grandes árvores, onde construíam suas casas, e que viviam também no alto dos rochedos, em cavernas naturais e construções rudimentares. Falou-me de grandes aves que faziam seus ninhos no alto das rochas, e de uma enorme ave corredora, além de grandes lagartos. Na ausência desses, capturavam um dos filhotes, que depois adestravam.

Max apontou uma clareira em meio às árvores e seguimos para lá... A clareira era enorme e acolhedora, exalava um aroma silvestre agridoce pelo relvado que se estendia. Pessoas, em grupos ou solitárias, espalhavam-se, algumas passeando, outras em atitude contemplativa, e às vezes numa prática ritualista, com movimentos cadenciados que pareciam imitar animais e insetos.

— Max, você é um mago? — perguntei.
Ele respondeu: — Magia?
— E o que vem a ser isso?
— A natureza...

Tateei, explanando os braços como o vira fazer: — A madre!!!

Exclamou ele, o supra-sumo: — Nas expressões do movimento e dessa conjunção, pode-se dizer o que, senão de um sopro divino? E, em sua esteira... sim, meu amigo, do milagre maior de todos: em sua esteira, a vida... e, explanando os braços em toda a sua diversidade, aí está a magia... dela somos parte (e abriu os braços) e de tudo isso.

(rascunho, correção em andamento)

A cada um, a providência insere, na devida condição e circunstância, o essencial (apesar das disparidades) para a superação e o desenvolvimento necessário. Entretanto, de nós e do meio, ao nos apercebermos na infância, intentamos ser aceitos e bem-sucedidos; buscamos nos situar modelando-nos e, na ausência de um arquétipo definido, olhamos para fora à procura de um modelo que, na medida do ego, nos seja adequado. Ao invés de nos olharmos e aceitarmos como somos para, a partir daí, aprendermos e assimilarmos bons valores, nos edificamos adotando conceitos, gostos, maneirismos e expressões, imitando, copiando e assimilando. E com isso nos tornamos como um caleidoscópio de influências.

E então me pergunto — quem sou, onde estou, para onde vou e para quê?
E você pode me dizer, na essência, quem é?

Gabriel falou-me de regiões, povos, crenças, costumes e guerras... Contou-me dos povos do quadrante da paz e do equilíbrio relativo outrora estabelecido e, posteriormente, quebrado. Mostrou-me a insígnia do seu povo, num medalhão preso ao pescoço por uma tira de couro, e disse que cada povo possuía a sua e que veneravam...

Falou de Nahil, um grande guerreiro, e de como unificara as tribos do Pântano, que até então viviam como os demais povos do quadrante sob o domínio de Nauhac, o grande senhor dos povos do planalto e da extensa planície. E de como, ao receber dos céus o fogo do trovão (crença difundida), tornara-se invencível... Contou-me como, com um pequeno grupo de guerreiros, atacara um entreposto do império, libertando nativos de diversos povos destinados ao cativeiro doméstico nas minas do império. Muitos, depois de ouvi-lo, quiseram acompanhá-lo, engrossando assim seu pequeno grupo. Aprendera, de incógnito, a observar patrulhas em treinamento, a se guardar à distância de raios e projéteis até então desconhecidos, que, aos primeiros disparos, faziam os nativos debandar espavoridos e desordenados. Em razão disso e do elemento surpresa, foram dominados.

Nahil passou a utilizar, em suas incursões contra o inimigo, as particularidades da região que conhecia bem, além das variações do clima e da disposição dos povos dominados contra seus senhores. Tornara-se, com isso, odiado e objeto de uma caçada implacável por parte do império, que incluía altas recompensas. Nahil possuía, em alto grau, o dom da palavra e um idealismo que transcendia da alma. Com isso, do nada, acabara por constituir-se espontaneamente uma rede eficiente de informações e proteção que frustrava os esforços de captura-lo, para dele fazer um exemplo que dissuadisse os demais. Por esse tempo, Nahil fizera que cada um dos seus ostentasse no peito a insígnia do povo a que pertenciam, e a ideia disseminou-se.

Assim que se soube no império, sobreveio uma brutal repressão, e o descontentamento com isto exaltou-se a ponto de que emissários dos povos foram ter com Nahil...

O encontro deu-se numa clareira, sob vigilância de sentinelas no topo das árvores... Nahil ouviu atentamente o misto de esperanças que as ações despertaram e o temor diante da repressão desencadeada... Pediu que lhe trouxessem um caneco com água e, numa das mãos feito concha, derramou, dizendo:

— Irmãos dos povos e das tribos, assim como a água que torrencialmente cai no deserto e escoa das montanhas e, através da floresta, encharca o pântano, o sangue que corre neste braço — mostrou o pulso e os braços dos povos — é o mesmo, assim como o sentimento de liberdade que nos motiva...

A partir daí, as emboscadas e escaramuças se multiplicaram. Era comum ver grandes aves, com arqueiros no dorso, mergulhando do céu, disparando setas embebidas com espécie de curare e se pondo a salvo de raios e projéteis disparados às tontas em fração de segundos... Grandes lagartos ou enormes "avestruzes" irrompiam pisoteando, com guerreiros no flanco, desferindo temíveis golpes com clavas ou bordunas. Às vezes eram precedidos por uma espécie de pigmeus, que além de zarabatanas arremessavam bolotas de barro cozido que, no interior, continham uma espécie de gás proveniente de macerados vegetais que, ao tocar o terreno, explodiam confundindo sentidos e provocando pânico.

Em razão disso, o comércio de escravos tornou-se arriscado e a produção das minas entrou em declínio. Nauac convocou em conselho os povos dominantes para deliberar sobre a situação e, convencidos da necessidade, optaram por um ataque em grande escala sobre as tribos, brutal e fulminante, que impossibilitasse reação.

Logo que as informações da grande mobilização chegaram, as tribos começaram a especular e o temor dos artefatos construídos com a ajuda do povo do céu generalizou-se, ao ponto de acusarem-se uns aos outros por terem dado ouvidos às loucuras de Nahil. Por este tempo, ele convencera os chefes das tribos a evacuarem as aldeias, transportando para cavernas nas montanhas os idosos, crianças e mulheres que não fossem guerreiras.

Nahil havia infiltrado nas minas guerreiros, através do comércio de escravos, e concluíra que o motim que articulavam deveria desencadear-se simultaneamente ao ataque que fariam à feitoria e às instalações, de modo que, ao sinal determinado, subjugariam os capatazes e, enquanto isso, do lado de fora Nahil atacaria. O sinal para o ataque e a insubordinação deu-se ao tempo em que, sobre as tribos, a calamidade se abatia.

Feito soar o alarme, a feitoria, que mais se parecia com um forte, acionou os soldados do regimento ali estacionado para a dura repressão. Quando marchavam para as minas, o ataque começou. Grandes aves com guerreiros no dorso mergulharam em voos rasantes sobre o complexo. Flechas incendiárias sibilavam, estabeleceu-se uma confusão, e os soldados atabalhoados procuravam abrigo em meio aos galpões, onde principiavam labaredas, para responder com suas armas. Nahil desviou o grosso do ataque dos galpões, concentrando-o sobre as máquinas de guerra para impedi-las de serem utilizadas. No interior das minas ecoava o crescente alarido dos escravos libertos, em fúria, que demandavam a saída. Enquanto os soldados mudavam de posição para defender os artefatos e as máquinas, os grandes lagartos e avestruzes, precedidos dos coquetéis com gases e de zarabatanas, irromperam pelos flancos, avançando sobre os soldados que, de todos os lados acossados, capitularam depois de um cerco e esgotados. 

                             A estação

A estação fora construída originalmente sobre um conjunto de grandes rochas que gravitavam nas proximidades de um planeta primitivo, em meio a um cinturão de asteroides. O complexo interligava-se a essas rochas por meio de portais, capazes de teletransportar matéria — ainda que a distâncias limitadas — através de frequências especiais.

Aproximamo-nos de um grupo que meditava em torno de um pedestal, de onde se irradiavam raios de luz por um enorme cristal em forma de gota d’água. Engastado, o cristal decompunha a luz que recebia da abóbada, espalhando-a como um prisma natural.

Max, ao passar, cumprimentou várias pessoas até chegar a uma mulher de aspecto jovem que parecia dirigir o grupo. Conversou com ela por alguns instantes e, com um gesto, nos apresentou. Leona — imaginemos assim o seu nome — convidou-nos a sentar.

Após as apresentações, pediu-nos que inspirássemos profundamente, procurando sentir o ambiente, o aroma e suas energias. Em seguida, orientou que nos imaginássemos fluindo, tornando-nos parte dele… e que gradativamente fôssemos nos desintegrando, como partículas a se expandirem pelo cosmos.

Pediu que liberássemos do ego nossas consciências e, depois, que evocássemos um recanto que nos fosse agradavelmente peculiar. Evoquei, então, um dos meus refúgios preferidos: os arredores de Planaltina.

— Observem a diversidade ao natural — disse ela. — Tudo consome, defeca, expande, limita e é limitado… controla e é controlado. E, de tudo isso, o que se nota é uma ausência total de lixo.

E por quê?

As águas correm sempre límpidas. No campo, onde não existe exclusão, tudo serve e é reaproveitado. Cada coisa para um propósito determinado. E o que é isso senão o equilíbrio ambiental? Um ciclo em que tudo converge, se entrelaça e se aglutina em torno de um princípio maior: a preservação e perpetuação das espécies.

Visualizemos a Terra. Nela, uma semente germina… agora, um útero, um óvulo… e depois, a eclosão da vida. E com ela, a consciência — do ser, do meio — no despertar da racionalidade. Transportemo-nos ao Gênesis: à ciência do bem e do mal, que nos conduziu, através da civilização, ao acúmulo de bens e à exploração do mais fraco.

Aproximemo-nos da civilização e… o que vemos, além dos desequilíbrios e seus frutos — exclusões, misérias — senão lixo por toda parte? A poluição que envenena os ares, apodrece os mananciais, agride o visual… oprime, ensurdece, torna insone os trabalhadores.

E dentre todas essas chagas, uma se destaca: a pior de todas, mãe das demais — a corrupção. Que no homem trava a evolução, nas instituições degrada os fins, nas iniciativas contamina o resultado… e nos governos, mina a eficiência.

Este é o grande mal de que padece a civilização: o nefando comércio de almas.

E esse comércio precisa ter fim. Prioritariamente, devemos combatê-lo em nós mesmos, para que não sejamos engolfados nos tentáculos desta grande besta. E, em seguida, nas instituições.


pt.wikipedia.org
                                                                       


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      Tudo, de repente, parecia se misturar, e me vi transportado para um lixão de periferia, que me pareceu de Goiânia. Caminhões despejavam o lixo, que era revirado e avidamente disputado por pessoas que a ele se misturavam, e com ele se confundiam.

Vi um monturo e, sobre ele, destacava-se um grande volume. O vento revirava suas páginas, como se as palavras quisessem escapar daquelas mãos sujas e impacientes. Um menino o apanhou, abriu-o, folheando com cuidado, e, depois, percebeu a chegada de um jovem que saudou o grupo de catadores e se aproximou.

Observei que, entre todos os achados, o jovem dava uma atenção especial aos livros. O menino, como se já soubesse, foi até ele e ofereceu o volume. De início, vi o jovem rejeitar, mas logo o pegou, abriu-o, folheou-o rapidamente e então disse, com voz baixa, quase para si mesmo:

— Tudo, praticamente tudo, está aqui.

O livro era um compêndio de estatísticas. Tudo a volta estava registrado nele: no campo, nas cidades, em todo o país… O que se produzia, as atividades, os empresários, os trabalhadores, as classes sociais e, por fim, o refugo — o que sobrava. O jovem olhou para o lixo ao redor e para o grupo que dispersava, e, com um tom de resignação, disse:

— Como nós.)
                                                                                                            .( imagem ilustrativa) Foto: Célio Silva
   O lixo espalhava-se por todo o descampado, atraindo moscas, urubus e cães famintos, além dos catadores de papel e sucata... Passou-me a ideia de um grande banquete — o das sobras e dos refugos de outro que acontece na sociedade. Os garçons, nesse caso, seriam os caminhões, e os convivas, as moscas, os cães, os urubus... e aquela gente.

Nas proximidades de um bairro que surgia, e a cerca de duzentos metros do leito de um córrego — poluído e retificado no seu curso — localizava-se o cenário. E, a um canto dele, assentado sobre um monturo e com um punhado de livros no colo, estava o rapaz. Parecia cismar. Seu olhar embebia-se do entorno, percorrendo-o, e por instantes se detinha no córrego, onde demorava...

A voz de Leona fugia e ressurgia, e acentuou: falava de um princípio maior e de como fôramos nele e através dele criados. E, dentre outras coisas, do fim que teríamos que atingir para que pudéssemos tomar posse do real significado de termos sido criados à sua imagem e semelhança — e do longo caminho que, para isso, devemos percorrer.

Citou, em analogia, Esaú e Jacó e o prato de ervilhas... Disse também que nos encontrávamos atulhados e atravancados por conceitos, sentimentos, opiniões e preconceitos — de grupos e de época — e de uma falsa impressão de inteligência e atualidade que isso nos causava. Predispúnhamo-nos, então, à desconfiança e à descrença de tudo aquilo que, segundo a visão corrente, caducara... como se um princípio, por si, fosse passível de caducidade.

— Vede os rios — ecoou a voz...

Olhei para o riacho engolfado por detritos, que se arrastava penosamente... Em maior ou menor grau, é assim que nos encontramos.
— Olhe agora para a cidade... — disse ela.

Olhei. E dei-me conta do que aquilo significava... e de como, apesar de tudo, era bom. Aglutinava (pensei) — além dos lares — o trabalho, a educação, o lazer, as esperanças de tanta gente. E, com tudo isso, também suas qualidades e seus defeitos. O reflexo do que de bom e mau se pode perceber... advém disso.

O grupo de catadores agora se aglomerava nas imediações de um fogo, cujas labaredas — com nuances de azul — liberavam a fumaça enegrecida da combustão dos encapados de um emaranhado de fios. E, ao lado, sobre o monturo, o pensamento do rapaz discorria. Enquanto desorelhava um livro, refletia sobre aquele contexto... e sobre o que ali se garimpava — tratar-se de uma riqueza mal direcionada e mal aproveitada.

Era, afinal, matéria-prima de poderosa indústria... E, no entanto, os que ali, na base dessa indústria da transformação, atuavam, continuavam em decadentes condições — que essa riqueza não transformava. De quebra, ainda prestavam às prefeituras o serviço, não remunerado, de retirar das ruas parte do lixo. As imagens falavam por si.

Questionava... E sofria, de si, incompreensões e a falta de oportunidades. Entretanto, no fundo, sabia resumir tudo isso à indolente descrença que o acometia — fruto de uma personalidade mal elaborada e acomodada, que, ao invés de seguir uma educação sequenciada e organizada conforme os interesses do meio, mergulhara num acervo desordenado, aqui e acolá recolhido, e chafurdara-se num emaranhado de sentimentos e informações.

Naquele contexto voejado e escarafunchado, poderia, por exemplo, deparar-se com a excelência de um Hemingway... ou se desconcertar com Voltaire... ou, através dos escritores russos, penetrar-se na própria alma... monologar com Shakespeare... e, com as sutilezas de Oscar Wilde, espicaçar-se. Não vou me alongar. Mas, caso não falasse de um Victor Hugo, de um Molière, de um Rostand, pecaria... Goethe, Cervantes, e tantos outros, então? E como deixar de fora os portugueses? Os brasileiros? Que fique, portanto, claro: o lixo é democrático — e dele, escritor algum escapa.

Imagine Albert Camus e A Peste, no lixo, caso fosse levado a sério... Adam Smith aqui se encontra. Marx e Engels também. Volta e meia, aqui ponteia Espinosa — e outros pensadores. O lixo a todos acolhe e não pergunta quem é, de que extrato, ideologia ou dignidade. E, no jargão popular, pode-se dizer que é como coração de mãe: sempre cabe mais um.

    O Contrato Social

(trecho do pensamento do rapaz)

O lixo, para o rapaz, tornara-se como uma biblioteca. E o que dele extraiu, repasso agora, toscamente...

Sobre a sociedade, o pensamento oscila entre esperanças e revolta, e no olhar — à medida que discorre — parece se transmutar na expressão de visionários e sonhadores que, ao longo dos séculos, viveram e sofreram por utopias, ao ponto de imolarem as próprias vidas. Utopias que, no inconsciente humano, parecem se impregnar — e, por mais combatidas que sejam, teimam sempre em reincidir...

A sociedade, segundo o pensamento, seria uma obra de todos, através das gerações. E o que de bom ou ruim acontece na atualidade é reflexo de tudo isso, conforme as qualidades, os defeitos e os estados de ignorância ou esclarecimento de todos nós.

A pirâmide — em seus diversos aspectos de figuração — exemplifica bem a sociedade, com sua dinâmica de classes e hierarquias que coexistem e interagem, conforme normas estabelecidas e interesses que as permeiam — e que nem sempre estão embasadas nos critérios necessários.

Dentre essas camadas, constituiu-se uma para gerir o todo, criar normas, direcionar caminhos e captar, do esforço comum, recursos que retornassem à sociedade na forma de benefícios. Refiro-me, naturalmente, à política. Mas não me alongarei nisso — tornar-se-ia um saco, como se diz... Ademais, é público e notório o grau de inversão de valores que ali acontece, de modo que o "servir" cede lugar ao "se servir". E o que fazer?

Resumindo, o pensamento se espraia de maneira curiosa, como se projetado num oceano invisível — segundo a fantasia do jovem — em que ele atirasse garrafinhas, uma após a outra, contendo mensagens que pacientemente vou interceptando e repassando...

Uma utopia. Não passa de uma utopia, esse acervo de conjecturas — embora pretenda que em princípios se abalize, e de tal modo que o primordial deles localizar-se-ia no verbo. E que, dentre outras coisas, o Big Bang, nele e com seus desdobramentos, conjugaria...

A palavra determina, pelo conteúdo, a existência — e, pela ausência dele, o vazio. É pela palavra que se traduz, ou se transporta, da inércia ao movimento, do caos à forma, do acaso à coerência. É no conteúdo da palavra — ou na falta dele, ou em sua distorção — que acontece o embate no interior do ser humano.

Portanto, dos princípios que regem a natureza aos estatutos da civilização, a palavra a tudo abarca. E, se distorcida ou desprovida de conteúdo, desnorteia. E, nessa entorpecida seara — em meio ao incipiente trigo do esforço humano — a descrença semeia um joio que, ao despontar, corrompe, e logo se espalha.

O fato de a civilização ter-se afastado das leis naturais — ou de tê-las distorcido (intuía o pensamento) — seria a causa de tanta miséria e descontentamentos. Na natureza, tudo se encaixa: cada coisa tem seu porquê, seu lugar, sua importância — servindo. Enquanto, na civilização, encontra-se, em larga escala, a figura do excluído.

A palavra — através do conteúdo que transporta — é fundamental na civilização. Entretanto, é comum encontrá-la vazia ou distorcida, tanto na base quanto no topo das muitas pirâmides que se entrelaçam e compõem a sociedade. A palavra vazia — e, na sua esteira, o vácuo — logo é ocupada pela corrupção e por um séquito de mazelas nocivas.

O paradoxo consiste no fato de que a palavra “sociedade” represente, para uns, tudo — e, para outros, absolutamente nada.

Sob a batuta da palavra “sociedade”, evoluem os extratos sociais e as classes. E, nesse contexto, com elegância e elasticidade, uma minoria desfila entre privilégios e facilidades, enquanto outros vão se ajeitando como dá — e uma maioria espremida tropeça grotescamente. Para alguns, é como se fosse um colossal Big Brother, onde tudo se resume a festas. Para outros, sobra o espiar, votar e pagar a conta. E por quê?

Desde os primórdios dos tempos, o chamado “contrato social” se baseia na exploração do mais fraco, na imposição e no domínio do mais forte. E, nas trincheiras do que se pode chamar de resistência verdadeira, persiste uma palavra desgastada e desacreditada: a utopia.

Mas que não se confunda com ideologias correntes, partidos ou modismos. O que muda, nesses casos, são apenas os métodos.

Nos fundamentos da criação, o poder conjuga-se na palavra “servir”. E é como quem serve que ele se concentra naquele que, em observância aos princípios e à essência da palavra, se dispôs. Portanto, em fidelidade às leis imutáveis, esse é o que de fato servirá.

O céu dos ambiciosos é o cume da pirâmide — e, para atingi-lo, vale tudo. Embora a vida na carne e os bens materiais sejam passageiros, o desfecho inevitável — para o qual tudo se encaminha — revelará, através da evolução dos espíritos, que o cume, pelo qual o insensato se bateu, comprou e se vendeu, resume-se no ego. E que a fortaleza dourada, onde com o acúmulo se refugiou, não passa de um castelo de cartas de um jogo viciado e corrompido.

Segundo o pensamento — que entre exaltado e combalido se alterna — a palavra “sociedade”, consoante à natureza, é abrangente. E sua convergência tende, inapelavelmente, para o equilíbrio, a preservação e, consequentemente, o bem comum.

   (texto sob correção)

                                         O Contrato Social

(continuação do pensamento do rapaz)

As diferenças — seria maçante analisá-las em detalhe — bastando, por ora, discorrer rapidamente sobre gostos, propensões, aptidões e vocações, inclusive da própria terra. A razão do quê, para quê e por quê de tudo isso repousa no conjunto. São ingredientes da grande e desordenada construção que se encontra em andamento — e em descompasso — como se fosse uma Babel de colossais proporções.

Ingredientes assim como o são: o capital, a mão de obra e a matéria-prima; a produção e o consumo; as necessidades e as resoluções; as atividades e o lucro.

A distorção acontece — como no capitalismo — quando um dos ingredientes, o capital, pelo grau de versatilidade que possui, submete, através de nações, grupos ou indivíduos, aqueles em que, por alguma razão, o fluxo de capital é exíguo ou mesmo inexistente. E, por essa via, explora. A concentração indevida gera, inevitavelmente, desequilíbrio.

O capital, dentro da colossal estrutura, configura-se como energia — combustível de propulsão e manutenção do aparato. Ou seja: do sistema. Para um bom funcionamento, precisa — como um todo — ser irrigado e azeitado. Portanto, quando ocorre detrimento de setores, camadas ou classes, instaura-se dentro do sistema aquilo que se configura como distorção — para não se dizer crime — propulsionada pela corrupção ou pela cultura dos privilégios.

No bojo disso tudo, oculta-se, como num Cavalo de Troia, um agente propulsor e causador de crises internas.

A sociedade, em tudo que a compõe, é um organismo — e, em parte, quando mal irrigado, capenga. Compromete-se. Assim como na vida, tudo é movimento. E o capital, sendo fluxo, oxigena. Se interrompido em partes, degrada. Compromete.

O sistema financeiro funciona como um coração dentro do sistema maior — bombeia. Mas quando age dentro do organismo como um glutão, acumulando gorduras em excesso, torna-se esclerótico e compromete o todo.

A produção — e tudo o que se constrói ou destrói — são frutos do capital e do trabalho. E o fim primordial de todo o esforço deve ser o bem-estar e as possibilidades de desenvolvimento e contribuição do último elo da cadeia: o cidadão. Com seus dependentes, em todas as classes. E, por extensão, a preservação do meio ambiente.

A taxa de juros ausculta — e, quando dita com fidelidade o compasso, cumpre sua função. O sistema, então, corresponde. Entretanto, quando a taxa se distorce — por qualquer motivo — o sistema cambaleia, compromete-se e ressoa suas disfunções em todos os setores.

A concentração de renda, sem o refluxo abrangente e necessário, dentro de qualquer sistema, provoca descompasso. Não é na quantidade do capital, mas sim em seu movimento, que se encontra a prosperidade.

O campo de investimento mais promissor, com retorno diversificado e garantido — aquele que repercute maravilhosamente em qualquer sistema — é o ser humano.

E o mercado? O grande mercado — a quem serve, enfim?

Aos consumidores? Aos produtores? Ao sistema financeiro? Ou aos especuladores?

O mercado é uma síntese entre o capital, a mão de obra, a produção, as necessidades e o consumo. Nele não se pode distorcer — sob o risco de comprometer, em parte e no todo, o organismo social.

Monopólios, oligopólios, queima de excedentes e cartelizações — tudo isso, dentro do sistema, além de crimes, são sonoros palavrões.

   

O Contrato Social
(continuação do pensamento do rapaz)

A ditadura... Abstenho-me aqui de uma análise mais profunda, pois essa forma de governo — cruel e obsoleta — já caiu no domínio da rejeição pública. Seus dias, ao que tudo indica, estão contados.

O socialismo — abrangendo aqui também o comunismo — peca, em parte, por ignorar princípios fundamentais como, por exemplo, o livre-arbítrio e uma liberdade responsável, suprimindo — tal qual os regimes ditatoriais — os direitos individuais da pessoa humana.

O pensamento que aqui se expressa entende que, assim como tudo o que existe é obra do todo, também o todo tem seu porquê e sua contribuição na construção daquilo com que todos sonhamos: um mundo melhor. E está, portanto, numa convergência — no embate e na esteira das divergências — a confluência do resultado final. Do esforço das correntes, dos partidos, das ideologias e do próprio aprimoramento democrático.

É nesse contexto — e no conteúdo da própria palavra — que a sociedade se torna, de fato, sociedade. E o indivíduo, seja ele quem for, de que classe, raça ou credo, torna-se parte efetiva do processo. E como?

A resposta está, também, no conteúdo e no espírito de outra palavra: socialismo — e naquilo que, a partir de um enfoque mais amplo, essa noção pode acarretar.

Produto de toda a sociedade, a coisa pública — o sistema que mantemos e pelo qual somos geridos — passaria, ou caminha, a tornar-se no futuro uma espécie de empresa. Uma empresa que abrange toda a nação e, consequentemente, todo o território.

Uma empresa pública — ou um conglomerado — que, do ponto de vista estratégico, ocupe áreas de relevância no interesse comum, e através das quais possa interagir com o todo e com a iniciativa privada, no sentido de um melhor andamento.

Na verdade, a grande empresa — composta por setores e segmentos que abrangem a sociedade como um todo — deveria interagir com a iniciativa privada, dirimindo ou intervindo, se necessário, através do princípio maior: o bem comum.

E das disposições do conjunto — emanadas e a ela confiadas — que essa empresa pública se tornaria a fiel depositária e guardiã: zelando por sua integridade e aplicação através dos poderes constituídos.

Assim como uma nave-mãe, ou um centro: instância maior de gestão e controle. E, portanto, situada no topo de uma pirâmide — ou de um conjunto delas — que se movimenta com naturalidade e disposição para o equilíbrio. Tal qual acontece na natureza, onde o todo serve a cada um de seus componentes, e o inverso também é verdadeiro. Servindo e sendo servido: eis o moto perpétuo de um círculo virtuoso.

Afinal, o que são os princípios, senão pontos de partida, de convergência e de transformação, dentro de um contexto de diversidade que se expande? E é justamente no embate das diferenças que o bem comum — lastreado por outros princípios — aglutina, aponta direções e proporciona o equilíbrio.

Na sociedade, deveria ser assim — não fosse a distorção. O produto final desse embate, hoje, tolda o horizonte com desequilíbrios que se traduzem em quadros de flagrante injustiça. Injustiça que, à sombra da Carta Magna, se multiplica. E, nas camadas populares, grassa um sentimento de impotência, desconfiança e insatisfação.

Na sociedade, de fato, a convergência não se faz em torno de personalidades, ideologias ou partidos — mas sim em torno de princípios. Princípios que, por suas propriedades, sejam capazes de aglutinar diferenças e promover equanimidade no seio e nas interações da diversidade. 
 

Ideologias e partidos são veículos que, na diversidade, se propõem a congregar ideias, visões e sentimentos afins — e a facilitar, com abrangência, o trânsito dessas ideias. De modo que, no âmbito da coisa pública, ao se confrontarem, contribuam para que os caminhos sejam encontrados e as soluções, costuradas.

Na sociedade de fato — que abrange do abastado ao excluído — as riquezas naturais, assim como a cultura com suas manifestações, são bens comuns, a serem administrados e direcionados ao bem de todos. Para que se compreenda a nação como uma empresa comum, basta acreditar na fusão de duas expressões: interesse maior e bem comum. E é precisamente nesse contexto que o pensamento se detém e focaliza o indivíduo.

A interação da iniciativa privada com o poder público torna-se, então, potencializada no caso de uma nação-empresa. Os objetivos, assim como as responsabilidades, passam a ser algo comum. Planeja-se, no conjunto, uma linha no horizonte — uma linha pensada não só para atender necessidades setoriais ou de classes específicas, mas para alcançar toda a massa humana em sua heterogeneidade.

Na ótica dos ativos e passivos, a pessoa humana — quando empregada ou empreendendo — encontra-se ativa no sistema. E em condição passiva, quando desempregada.

Mas o indivíduo, na condição passiva, não fica entregue à própria sorte. Dentro de um sistema bem desenhado, ele é encaminhado à necessária reciclagem e posterior reaproveitamento.

A visão do conjunto, e a corresponsabilidade do todo para com cada um — e de cada um para com os demais — é a base de uma convergência de atribuições. Nela, setores, classes e indivíduos, com seus direitos e deveres, interagem, dentro da grande pirâmide, locupletando-se em prol do bem comum e da estabilidade compartilhada.

Essa visão sistêmica é necessária para se compreender os mecanismos de resolução e financiamento que permitam, no interior do sistema, que a massa passiva — desempregada ou inativa — interaja positivamente. De modo que, numa sociedade que seja, de fato, uma sociedade, não existam deserdados, tampouco excluídos.

A responsabilidade na condução e aprimoramento do sistema, além de um atributo, é um dever comum.

Numa nação-empresa, o governo — democraticamente escolhido —, com os setores que, em consonância com as aspirações do conjunto, deliberam e o auxiliam, precisa prestar contas de um retorno para o bem comum. Não apenas do que se arrecada em impostos, mas também da exploração da riqueza territorial — que é comum. E nisso compreende-se o subsolo.

Numa nação-empresa — e, portanto, no verdadeiro socialismo — não existem Zés-Ninguéns. Existem funcionários, ativos ou passivos, dentro do sistema. Aptos ou inaptos — isso não importa. Todos são acionistas e herdeiros naturais de um empreendimento comum, que extrapola gerações.

Nos oceanos do invisível, há incontáveis garrafas que derivam — com mensagens de fé e crença em um mundo melhor — lançadas por uma multidão de raças, credos e esperanças. Seres dos mais variados que, através dos tempos, acreditaram na utopia, por ela se bateram e, por ela, deram seu testemunho. Alguns pagaram com a liberdade, outros com a própria vida. Muitos foram alvos de descaso e zombaria. Alguns se tornaram conhecidos e reconhecidos. Para a maioria, coube o anonimato.

E é, portanto, desse acervo, desse emaranhado de ideias, tentativas e esperanças que deriva — ou perambula — na direção, ou em busca, de um princípio, que o pensamento conclui:

Nas diferenças, sim — é nelas, e delas, que se pode extrair o esboço de uma síntese que se aprimora. Queiramos ou não, combatida ferozmente ou não, caminhamos para ela...

Ó mistérios insondáveis, que o princípio oculta... Por mais que se esquadrinhe, não se encontram respostas plenas. E há que se salientar: como bússola, prumo, nível ou astrolábio, o ego não serve...

Leona disse:
"Observem os níveis de poluição e violência no planeta Terra — e disso, o que se conclui como causa principal? Os níveis de corrupção, posso afirmar... É a condição humana.
Poluição e violências são, em parte — e no todo — reflexos dessa distorção.
Um riacho poluído tem suas propriedades e funções comprometidas. O mesmo se dá, de certo modo, com a pessoa corrompida."

    Quando a corrupção, sob a ótica humana, tornar-se execrável e inaceitável — tal qual hoje consideramos a escravidão —, a utopia deixará de ser uma miragem e passará a ser compreendida como caminho: praticável e seguro, assimilável por toda a humanidade.

A inteligência, quando sob o timão do ego, considera partes e interesses. Já a sabedoria, que vem do todo, ausculta, intui, sintetiza. E quando o interior humano se vê atravancado por conceitos de época ou por preconceitos, logo é acometido pela descrença — e esta quase sempre diz respeito àquilo que só através do sentimento se torna perceptível.

A razão disso talvez repouse em nossos campos internos — na ausência das condições necessárias para que a fé germine. Por natureza, não estamos de todo insensíveis, mas predispostos, penso eu, a buscar teorias através do ego. E essas, ainda que consubstanciadas por estudos e experimentos, pouco esclarecem o essencial.

A magia da vida encontra-se no sentimento. E o bem comum, talvez, no amor — ou, numa gama de todos os sentimentos, naquele insight maravilhoso.

Assim como o riacho, que precisa estar cristalino para que a vida nele flua com todas as suas propriedades e possibilidades, o interior humano carece de transparência para que, do todo, absorva com qualidade — e, para o todo, de si, também projete com a mesma qualidade. Porque, do conteúdo de nossas atitudes e escolhas, projetamos. E, ao projetar, semeamos.

Causa e efeito. Ação e reação. Ou, como alguns preferem, lei do retorno.

Somos, ao mesmo tempo, emissores e receptores, porque somos parte de um todo que se expressa da matéria à pura energia — e vice-versa. E, no interior deste colossal organismo, ou macrocomposição que compreende a criação divina, interpretamos e atuamos com nossas escolhas — construindo ou destruindo, compondo ou descompondo. Porque neste universo, partículas, moléculas e células, sob determinados princípios e leis, se agrupam, formando organismos e mundos diversos que se locupletam interagindo.

Como numa frase musical, a resposta vem conforme a harmonia. Nas atitudes do homem, dá-se o mesmo. E a qualidade das expressões emitidas define a frequência com que se sintoniza o universo.

Soube, através do Max, que Gabriel retornaria em breve. Que, a não ser por vagas brumas no inconsciente, de nada se lembraria. E que, das ideias consubstanciadas pela experiência, encontraria um modo de compartilhar. No entanto, como todos nós, teria no ego, em potencial, um calcanhar de Aquiles. Parte da luta.

Concluí, pensativo, que a interação das esferas conscientes se dá em estrita obediência ao livre-arbítrio.

De volta ao descampado, na faina do lixão, encontrei o jovem — sentado sobre um monturo, pensativo, a observar. Tinha nas mãos um gibi infantil, daqueles do passado. E notei que, nos oceanos do invisível, as garrafas com mensagens ainda derivavam. Algumas, claro que bisbilhotei, falavam da beira do córrego, da última rua e de seus moradores. Diziam assim:

“Como seria bom, no contexto da nação como empresa comum, se aqui, como parte de uma busca por solução, governo, sociedade e moradores interagissem...”

Porque — olhando-se sob o enfoque empresarial — o que se vê?

Problemas. Uma gama deles.
Mas também soluções. E oportunidades.

Sob o enfoque do governo: carências, prejuízos, desgaste.
E do lado dos moradores?

A imagem de um cão enxotado, faminto e acuado, que às vezes... rilha os dentes.

     Imagine-os — continua o pensamento — ao longo do córrego, reunidos em associações em defesa de suas águas, organizados em consórcio com o governo e o empresariado. Conscientizados, zelariam por aquele trecho que lhes compete, mantendo-o limpo, como parte de um esforço coletivo de combate às epidemias.

O governo, por sua vez, poderia atuar por meio de órgãos como saúde e educação, monitorando as necessidades locais, prevenindo o abuso de drogas e promovendo orientações de cidadania e bem-estar.

Em contrapartida — e aqui no âmbito da nação-empresa —, o que lhes seria oferecido?

Ajuda e suporte.
Sim, por parte do governo e da sociedade. E como isso funcionaria?

Seria essencial pensar que, numa sociedade de fato, o capital configura-se como combustível. E, proporcionalmente, deveria alimentar a todos em suas necessidades. Para isso, bastaria tornar maleáveis as regras do trabalho, ajustando-as às realidades locais — e às necessidades, que abundam por toda parte em diferentes ocupações.

O empresariado, até mesmo para atender às exigências sociais que condicionam sua participação em licitações do setor público, ofereceria sua parte no esforço coletivo. Do trecho que apoiassem, poderiam também tirar algum retorno — com, por exemplo, marketing em outdoors, dando visibilidade à sua colaboração.

Desse modo, iniciativas como o Bolsa Família poderiam ganhar nova consistência, tornando-se mais abrangentes e sustentáveis, com retorno através de trabalho ou contribuição ajustada à condição do associado carente ou inativo. Assim, o auxílio se transmutaria em investimento. Um ciclo virtuoso.

No olhar do jovem, agora a passear pelos barrancos devorados, onde a erosão avança perigosamente em direção aos barracos, percebe-se mais que melancolia: conjecturas sobre a insegurança, um sentimento de impotência e horror partilhado pelos moradores diante da ameaça de, a qualquer momento, serem engolidos.

Uma indagação surge: por que não estão segurados?

Sim, por que não existe ali um seguro contra calamidades naturais, que são, muitas vezes, potencializadas pela exploração desenfreada dos recursos naturais, feita em nome do bem de poucos e do “progresso” das classes bem situadas?

Então, por que não se propõe, pelo menos, uma pequena taxa sobre produtos e serviços, que não sobrecarregue ninguém, e que forme um fundo nacional?

Um fundo que, em casos de flagelo, proporcione à população atingida, com dignidade e por direito, o básico para um recomeço.

Essa ideia pressupõe um agrupamento de sócios em torno de um bem ou projeto comum — e aqui, a palavra “sociedade” retoma seu sentido pleno e concreto.

A abrangência disso é total, porque os interesses — na sua heterogeneidade — se interligam no âmbito social, conforme o espírito da própria palavra.

Numa nação-empresa, ou sociedade de fato, a convergência, abalizada por princípios, não se opõe ao lucro. Ao contrário: compreende-o como parte da dinâmica entre setores e classes, assim como ocorre em toda cadeia produtiva.

Como exemplo: numa cadeia de atividades que, do setor produtivo, passa pelo governo até chegar ao convés de um navio com um produto para exportação, os participantes acordariam entre si a partilha proporcional dos dividendos. Todos os elos do processo, cientes de suas contribuições, seriam incluídos no benefício.

A exclusão não é mais aceita como fatalidade. O lucro precisa ser socializado, proporcionalmente à contribuição, sob pena de comprometer o todo.

Da mesma forma que uma má circulação nos membros inferiores pode causar trombose, necrose e até amputação, a concentração de renda na economia conduz setores inteiros à estagnação e, no tecido social, à exclusão dos periféricos.

Numa sociedade de fato, a renda através do trabalho é um direito de todos. Cabe ao governo, em parceria com a sociedade, garantir esse acesso — em todas as suas modalidades. E, para aqueles que não possam exercê-lo, por idade ou deficiência, assegurar uma renda básica digna, independente de qualquer critério discriminatório.

Para isso, defende-se, entre outras medidas, uma taxação da movimentação financeira — como foi o caso da CPMF —, que sairia do âmbito exclusivo do mercado e retornaria à sociedade como investimento solidário.

De imediato, os recursos retornariam pelos circuitos da economia básica, constituindo-se a partir daí — desde que não haja desvios — num círculo crescente e virtuoso.

O pensamento compreende que é no movimento do capital — e não em sua quantidade — que reside a prosperidade, e que a qualidade daquilo que ele deixa em sua esteira vai depender diretamente do número de beneficiários e suas demandas atendidas.


Os catadores agora separam o material conquistado, enquanto de alguns pontos evola uma fumaça negra, vinda de emaranhados de fios de cobre sendo queimados. E do pensamento — que estranhamente ainda se alimenta de fé — continuam a ser lançadas, aos oceanos do invisível, garrafinhas com mensagens. Como quem prega no deserto. E eu, com essa curiosidade que me é peculiar, continuei a bisbilhotar.

Aqui a utopia beira o exagero: imagine-se, além de uma cooperativa — aliás, um punhado delas, estrategicamente situadas em cada metrópole, com uma central coordenadora — algo ainda mais ousado.

Imagine que os caminhões que esporadicamente despejam lixo nesse cenário pertencessem à cooperativa. Que esta tivesse evoluído, estendendo-se aos desempregados — e no caso, aos motoristas. Alguns desses veículos teriam sido obtidos com apoio da comunidade internacional, disposta e sensível a ver no que aquilo daria.

Imagine, leitor, se quiser queimar um pouco do seu tempo com essa utopia, que se conseguisse, a partir dali, contratos com metrópoles e capitais para recolhimento e processamento do lixo.

E mais ainda: que em todos os estados, a central acolhesse desempregados, promovendo sua inclusão por meio de contratos com empresas e estatais para prestação de serviços diversos. Mesmo que inicialmente apenas para treinamento e trabalho na coleta e reciclagem.

É de se pensar — e vale demorar-se aqui — sobre a abrangência e o poder político que um complexo de tal natureza poderia vir a somar. E, a partir disso, refletir sobre a natureza e estrutura da sua diretoria.


Sabe-se que, no universo dos catadores de papel e recicláveis, estão presentes toda sorte de mazelas: da violência ao abuso de drogas, da prostituição ao furto. Soma-se a isso a baixa autoestima, escolaridade precária, desnutrição e ausência de higiene.

Entretanto, isso não invalida sua humanidade.

Tratam-se de seres humanos tanto quanto aqueles que ostentam brasões de família ou cujos nomes figuram nas páginas da Forbes.

Representam, isto sim, para a sociedade e o poder público, um grande desafio — e para sociólogos e estudiosos do comportamento humano, um imenso laboratório.

Por essas razões — e tantas outras —, um estatuto e uma diretoria para tal entidade devem ser cuidadosamente pensados. Devem estar consorciados com setores que garantam transparência nas contas e nas atividades. O grau de vulnerabilidade envolvido exige um suporte confiável, tão essencial quanto evitar que essa estrutura se torne condomínio de políticos, partidos ou ideologias, ou seja cooptada por interesses escusos.


A proposta, portanto, nasce a partir da base piramidal, de suas exclusões e carências. Propõe-se construir com o material que se tem — e com o devido suporte — uma via de conexão entre o setor de reciclagem e a parcela de desafortunados que, aos trancos e barrancos, sobrevivem à margem daquilo que compreendemos e denominamos sociedade.

São reais e múltiplas as possibilidades de que o mercado se abra aos excluídos e desempregados, desde que organizados, treinados e monitorados em suas carências e potencialidades.

    Devidamente consubstanciado, o empreendimento tem o potencial de abrigar, abranger, treinar, organizar e oferecer à sociedade, no seu conjunto, uma mão de obra diversificada. A visão, como preconiza o pensamento, é de conjunto, e não poderia abrir mão — nem prescindir — de uma internacionalidade abalizada em princípios que tornassem obsoletas ou eclipsadas as alianças transitórias, o poderio militar e econômico.

A globalização é um fato e exacerba a polaridade do bem e do mal no interior humano, diante de um vislumbre que, segundo o pensamento, aparenta ser real: a possibilidade de um domínio total. Inexequível, porém, sob a ótica do ego e dos interesses, e segundo as Escrituras, perfeitamente natural — pois desde tempos imemoriais o poder se reserva, porque é com fidelidade e firmeza que do todo e para o todo, através de princípios, servirá.

Segundo consta, terá por conselho as famílias da Terra, que em torno de uma grande mesa se assentarão para, a seu tempo, discutir e deliberar. Ali estarão os Semitas, quando da casa de Abraão reconciliada e pacificada... os Latinos... os Anglos e Saxões... os Eslavos... os Nórdicos... os Negros... os Amarelos e, enfim, todos os povos, sem exceção.

E como isso vai se dar...



(continua)


































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 (continua)

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