Os dois córregos "Rascunho"

                                                                    Flickr


         Os dois córregos

Pompílio — o nome que emprestáramos do proprietário da área às margens do córrego, que englobava uma velha cerâmica ainda em atividade à época.
Área enorme, e claro: o Pompílio, nosso poço de banho e folguedos (antes da poluição), foi palco de muitas disputas de pique-pega embaixo d’água, canga-pé e exibicionismos que se resumiam a saltos de pé e mergulhos do alto dos galhos das árvores à margem do poço. E o auge das ousadias consistia — e consistia mesmo — na tremulante forquilha, lá no alto da copa. De lá, não ousávamos pular de ponta-cabeça. Pulávamos de pé.

Porém, um dia, apareceu um moleque que não conhecíamos. Ousado. Como nós, subiu na árvore. E mergulhou. Com estilo. Bonito.
Ousou até o limite dos mais corajosos de nós — e ultrapassou.

Do ponto em que ele saltara, embiquei. Ele um pouco mais alto, eu acompanhando. Até que — e tinha que ser ela — a forquilha tremulante.
Ele subiu. E, nas ramificações laterais, foi se agarrando, como sobre um naco de gelatina. Procurava apoio, equilibrava-se.
Arregou. Já não era sem tempo...

Eu subi então. E, também me agarrando nas ramificações laterais, tremulando como ele, olhei para o poço que, lá de cima, parecia diminuto.
Pensei em recuar. Não seria vergonha. O moleque recuou.
Mas olhavam. Instigavam. Os amigos. O ego... o ego. A afronta...
Seja como Deus quiser.

Embiquei. Arqueando. Pernas dobrando. Quase bati de costas.
Emergi. Lívido.
Graças a Deus — e para nunca mais.








 

Passávamos defronte à casa do Sr. Pompílio, a caminho do poço e da ponte velha de madeira, que, em dias de chuva forte, era arrancada pela força das águas (passávamos de mergulho sob ela). Restava, então, no vão, dois enormes troncos meio carcomidos — e os atravessávamos numa boa.

Ficava numa derivação da estrada que costeava Planaltina. Um pouco abaixo, em direção à mata ciliar e à ponte velha sobre o córrego, localizava-se a casa dele e, logo após, também de sua propriedade, a velha cerâmica.

No lombo da curva à direita, quase em “S”, após a casa, havia outra — e enorme — propriedade de um outro senhor, também conceituado na região, assim como o Sr. Pompílio: um aramado farpado de cerca.
O Dr. João, que também — e apenas de ouvirmos falar — conhecíamos.


                                                           Blogspot.com

                                 captando a luz blogger


 

Na parte baixa da propriedade, já no interior, à orla da mata, havia sinais de abandono — resquícios, ruínas de uma velha usina ou engenho de cana-de-açúcar, outrora importante. Um galpão antigo, carcomido pelo tempo, e um barracão em desuso, repleto de quinquilharias: uma mala velha com revistas dos anos quarenta, restos de antigas publicações, apetrechos antigos — ou o que deles restava...
Fragmentos de parede e alicerces apareciam um pouco abaixo, junto a um muro de pedra, alto, por onde, em toda sua extensão, correra outrora uma caudalosa bica, até o antigo galpão do moinho e seu maquinário — presumo eu.

O galpão ainda permanecia de pé, com telhado e vigas de aroeira, todas repletas de morcegos pendurados, que alvoroçávamos em intensa revoada, alvejada a estilingue.

No desembocar do galpão, bem no alto do muro de pedra, brotara, enraizara, crescera e estendera suas galhas ao redor do galpão e da bica, uma gameleira de médio porte.

Tomada, entranhada de mato, à esquerda e à frente do galpão, havia uma peça enorme — da velha moenda, presumo — com uma data gravada: 1860. Eu, desde aquela época, já achava interessante.

A área que a cerâmica englobava à época era extensa, e se compunha de três fornos — sendo o principal e maior deles logo na entrada.
Ali, com moenda giratória, varais e tração animal, uma junta de bois mourejavam o dia inteiro em movimentos circulares, amassando e revolvendo o barro.

A cerâmica era vasta. Para além dos fornos e das casas de funcionários, havia lagoas esparsas — buracos alagados, restos da extração do barro.

Na orla da mata, nas proximidades do último e mais distante forno, era por entre brejo e mato que se abria a picada — o caminho por onde adentrávamos, em demanda ao que chamávamos de: dois córregos.



                                                       youtube. com


Após a ponte, por um trilheiro batido à direita, transpondo o arame farpado em direção ao velho forno e à orla da mata, seguíamos pela picada — atravessando o sarobal brejado, recoberto com varas por conta dos atolamentos.

Ali, munidos de improvisadas varas de pescar de pindaíba, levávamos também um rústico embornal de lona (que eu mesmo confeccionava com restos de encerado), um litro — lata de óleo de cozinha com alça, aberta de um lado, com vela acesa no interior, servindo de lanterna — e uma lata de 3,6 litros de tinta, com estrume de gado, que mantínhamos por perto queimando para afugentar as muriçocas, em quantidade e voracidade absurdas à noite.

Adentrávamos a picada pisando e caminhando sobre varas estendidas no brejo. De vez em quando, o pé resvalava, e atolávamos — por vezes até a coxa — em meio a troças e muitas risadas.

Após o sarobal brejado e uma sequência de lagoinhas, passávamos ao lado de duas delas, já sob mata fechada, em terreno firme, coberto de folhas secas e apodrecidas.

A vegetação era rica — um entrelaçado de árvores com cipós e arbustos, bromélias variadas, samambaias (inclusive de xaxim), enormes, com suas copas e troncos. No alto, em forquilhas ou depressões nos galhos, víamos orquídeas belíssimas — algumas, inatingíveis.


                                                      www.pinterest.com

Pinterest

Havia trilheiros de capivara e preás por toda parte, e até cotia já havíamos encontrado.
Chegávamos no primeiro dos córregos geralmente no crepúsculo, já na boca da noite.
Atravessávamos por uma pinguela — um tronco de árvore não muito grosso, atravessado sobre o curso d’água — e alcançávamos a faixa de terra entre os dois córregos, ou braços estreitos e profundos de um mesmo córrego que se dividia e afluía até a fusão e reencontro em um curso maior de águas, que costeava Planaltina.

                                                   Docplayer.com.br
 Oscilávamos entre um e outro córrego, à procura de remansos. Era só afundar o anzol para sentir o puxavanco e outros mais, para fisgarmos, quase com a ponta da vara tocando a água. Arrastávamos, debatendo, pesando, entortando a vara — geralmente de pindaíba — lutando com bagres de bom tamanho e, de vez em quando, algum que dava gosto, enorme...

Já noite alta, iluminados pelo foco da vela, com a lata exaurindo o resto da bosta e fumaça, tomávamos o caminho de volta.

Numa dessas, por um trilheiro, em fila indiana, atravessávamos uma pinguela: eu na frente, o Nobré logo atrás, o Josué também atravessou, e o Pelica — Pelicano, Levi, irmão do Nobré — quando estava no meio, balançou, tentou segurar, mas, sabe-se lá como, tchibum! Só vi da cabeça os cabelinhos sumirem, para logo depois, encharcados, reaparecerem...

À beira da pinguela, ele se agarrava, tentando escalar e sair, todo encharcado e inconformado, sob a risada geral, acusando o irmão da queda e da merda.. Edição

     foto DU Zuppani









Bom, apresentei um de nossos costumeiros locais de folguedos e pesca. Pretendi, com isso, dentre outras coisas, evidenciar a composição natural diversificada e riquíssima — em vários aspectos — e, infelizmente, desprezada da região onde se localiza Planaltina, DF.

Embora a maior parte tenha se perdido, ainda resta muito de interessante que a região pode oferecer, como as águas emendadas.

Algumas vezes, em minhas andanças de menino, tentei localizar, por sinais ou resquícios, o sítio onde se estabelecera a oficina e moradia do célebre Mestre de Armas, de quem se originara o nome do arraial e região à época.

Por vezes, tentei também localizar a famosa e histórica Estrada Real que cortava a região, e que, sem saber, devo ter atravessado muitas vezes.

Desconfio que um trecho muito antigo situava-se entre o córrego Furnal (Fumal) e a Lagoa Bonita (Águas Emendadas), por conta dos sulcos na terra batida e dura, compactada por rodas de carro de boi naquele tempo, provavelmente.(edição continua)
                        
                                
                                                    turismo.culturamix.com                 

                                                      ciclo mochileiros.com

O desconhecimento dos habitantes e o desinteresse das autoridades e dos mais esclarecidos em localizar, resgatar essa história e preservá-la para as futuras gerações é triste.

Quanto aos amigos que conheci em Planaltina, oriundos da velha Cap, cada qual com suas particularidades, tê-los conhecido foi bom e preencheu...

O Fernando, negrão — ô negão! Algumas pessoas se dirigiam a ele desse modo, sem conotação ou intenção alguma de racismo. (Tipo guarda-roupa: fortíssimo e inteligente.) Ele tinha sempre a última palavra quando o assunto eram os componentes do cerrado.

Quando deparávamos com algo que não conhecíamos, ele logo, de pronto, o distinguia (tinha realmente bom conhecimento). Era só aparecer um inseto, pássaro, animal, árvore ou fruto qualquer que estranhássemos, e ele sapecava o nome: “É um sibite!”, quando se tratava de um pássaro pequeno.

A partir daí, concluía-se que na região e nos cerrados de Planaltina tinha sibite para todo gosto, de diversas cores e formatos.


                                                                                                                      
                                                                                                                  "topetudo"                  
                                                                                                                                www.wikiaves.com


                                                                                        


                                                                                                                                                                                                                                                                                                                 

Tinha a formiga-onça, e gostávamos de observá-la com o devido respeito e cuidado, por causa da possibilidade de ferroadas que reputávamos como dolorosas...

Variedade de aranhas, lagartos e cobras; tinha o melêta (tamanduá-mirim), tatu, raposa, veado-campeiro...

O piolho de urubu... assoprávamos suas armadilhas até descobri-los...

O besouro rola-bosta, etc.

 




    Piolho de urubu     


                                                                                 foto Bio blog           
     foto frutos da terra


         H Ralf lundgren
                                                          fot 
                                                                                                                       f
         Formiga onça

                                                                                                                                                                                                                                               
O bate bunda, pequeno pássaro marrom que corria pelo chão, alçando
pequenos voos e assentando, logo a frente para correr de novo e, por muita de vezes sob a mira de nossos estilingues,( cultura de época em meio a molecada) infelizmente...




                                                 Andarilho "bate bunda" foto Rafael Bessa   







Isto sem falar de rãs e gías pimenta que nos brejados a noite, munidos com  lanterna e chuço as espetávamos.



ufv.br Gia pimenta
A tanajura — inventamos, numa das revoadas, capturar baciadas delas, retirar suas bundas, fritar e comer com farinha...
E não poderia deixar de lembrar das gias, pimenta e rãs das beiras dos córregos e brejados formados pelo escorrido das torneiras de esquina das quadras, onde a gente tomava banho embaixo delas e buscava, em latas de vinte litros, água para uso doméstico.

Codornas, nambus, perdizes, juritis, gralhas, pica-paus, rolinhas, joãos-bobos, almas-de-gato etc. — na mira de nossos estilingues, volta e meia deparávamos com um veado.

Numa dessas, o Batista protagonizou uma cagada: acertou um balaço de estilingue no flanco de um deles, e o mesmo Batista, em pleno voo, acertou a asa de um gavião. Ele deu um giro, feito avião em acrobacias, e continuou a performance de voo.

Aplaudo hoje iniciativas como a do Águas Emendadas, onde o Evando Lopes fotografa e divulga espécimes do cerrado e da natureza, contribuindo para a preservação deste tesouro sem preço para futuras gerações.( edição, continua)
                                                                                                                 Gavião cinza foto Cláudio Timm





Na década de setenta, durante sua estadia no Exército, o Batista trouxe uma novidade que daria muito o que falar e mudaria as coisas em Planaltina e em nossas vidas... a maconha.

Depois de um vício que durou quinze anos, consegui escapar — eu e alguns outros... Mas essa é outra história, talvez um dia eu a aborde e me aprofunde nela.

Quanto aos meus amigos Fernando, Renê, Batista, os tats Elias e Daniel, etc., resta um “consolo”: atualmente, “esgarranchados”, moram onde outrora existia um de nossos pomares naturais.

E o nome do lugar? Vila Garrancho, pode? Quando der, vou visitá-los.

Comentários