Memórias de Planaltina - Vila Buritis

Remoção da Velha Cap para Planaltina

Em meio à algaravia de tábuas, pertences e vizinhos, e de posse do que restara do barraco da Rua dos Correios, na Velha Cap, nos vimos, enfim, despejados no pleno cerrado dos buritis, em Planaltina-DF. Isso depois de sermos parados numa barreira e, sem exceção, vacinados.

O tio não perdeu tempo: de enxada em punho, começou logo a limpar o lote. Eu, por minha vez, pus-me a perambular, fazendo contato com os vizinhos e explorando a região.

Depois de reencontrar alguns amigos e conhecidos, arrisquei-me pelo mato e acabei dando com um verdadeiro pomar. Sim — o cerrado de Planaltina era um pomar natural...


Araticum do cerrado 
- conhecendoacaatinga.blogspot.com




Eu nunca tinha visto algo assim: araticuns por toda parte davam a impressão de um Natal fora de época, alternando domínios com cagaiteiras e pequizeiros. Isso sem falar do barú, do figo e do murici. E alheios a essa disputa — ou sem dar a mínima — pontilhavam por ali cajus, bacoparis, mangabas, curriolas, jatobás, pitangas, araçás, gabirobas e mamacadelas — logo promovidas a nosso chiclete, kkkkk, com leite e tudo.

Errava eu pras bandas da Sucupira (vila decadente e esparsa, numa das pontas de Planaltina) quando dei com o João Batista — “Batista” — que, assim como eu, perambulava... Caminhamos juntos, trocando impressões, e na volta ele me conduziu até o barraco onde morava, no Conjunto F da Quadra 3, que consistia de uma só peça: um pequeno cômodo de madeira, posteriormente aumentado.

No interior do cômodo, comprimiam-se duas camas, um fogão e uma base improvisada atulhada de objetos de uso pessoal e quinquilharias. Numa das camas, esparramado, encontrava-se o Fernando, que viria a ser um amigo inseparável. Agora, naquele cenário já espremido, adicione-se mais dois meninos — o Daniel e o Elias, os "tats" — e Dona Maria, uma senhora devotada ao lar e dedicada aos filhos. Verdadeira heroína. Sozinha, desdobrava-se lavando e passando roupas pra alimentá-los, sempre com o fantasma da fome a rondar... (Quando ouço uma música que diz, na letra, “mãe preta do cerrado”, é a imagem dela que me vem à mente...)

Alegre, expansiva, brincalhona e amiga. (Quanta saudade... se foi e eu nem fui ao enterro.)

Sempre que eu podia, furtava das latas sempre cheias que o boníssimo e previdente tio Miguel mantinha em casa, e os socorria às escondidas. E no mais, complementávamos com frutas que furtávamos de quintais e chácaras, ou colhíamos do cerrado — sem falar dos peixes que alegremente pescávamos.

Noutro conjunto da quadra, morava a Lourdes (irmã do Fernando), com o filho Samuel — dela com o Abrão (separados), um índio Xerente e capitão de aldeia na região do Araguaia — e também Mãe Neném, centenária, mãe de Dona Maria, com seu filho Zé Paulo e a prima Lira, também idosa, num puxado colado ao barraco da Lourdes.

O Zé Paulo, segundo diziam, fora presidente de um sindicato (se não me falha a memória, de motoristas) e, durante o governo militar, sob acusação de atos subversivos, foi destituído e preso. Disseram-me que sofrera horrores. Depois foi solto, sem direito a nada. Acredito que nem ao lote — que não tinha. Junto da mãe centenária e da prima Lira, foi abrigado numa nesga de terreno, em estreitos cômodos sob a proteção da Lourdes. Anônimo, excluído e esquecido — apesar disso, gozava do respeito e da veneração da família. Às vezes saía com a gente pra pescar. Comunicativo, se expressava muito bem. Eu gostava de ouvi-lo — e nunca ouvi dele uma palavra sequer sobre política ou ideologia.

Em datas de aniversário de Mãe Neném, ele conseguia reunir, no barraco da Lourdes, alguns dos antigos amigos. Os carros ficavam enfileirados e estacionados, em contraste com tudo. Lembro-me que, numa dessas ocasiões, ele trouxe o jornal e, como era de costume, a certa altura pediu a palavra e, com a eloquência que tinha, fez emocionado discurso em homenagem (se não me falha a memória) a “Dona Josefa”, sua mãe — e finalizou dirigindo-se, através do jornal, à sociedade e ao governo, com o pedido de um lote para sua mãe... O que não conseguiu.

Antes que “desta” se fosse... Nos últimos tempos, ele, animado com a promulgação da anistia, lutava por se aposentar... Não sei se conseguiu, ou se houve tempo para usufruir.

Conclusão: os militares — e o país — ficaram devendo essa.

Um dia, o capitão Abrão apareceu para ver o Samuel. Fui conhecê-lo junto com os meninos. Chamou-nos pra uma volta e, dentro de um boteco, abriu a mochila, presenteando cada um com miçangas. Depois, como na minha vez não achou mais nada, pegou uma cordinha trançada de embiras e, dando algumas voltas, amarrou no meu pulso. Perguntou meu nome. Depois disse:
— Saulo é de confiança.
Perguntei:
— Por quê?
Apontando pro meu pulso, respondeu:
— Não sobrou e nem faltou... ficou ali. kkkkkk

Ficou mesmo. Feito um troféu... até fragmentar-se.


Comentários