O canto da terra 2
Na carvoaria, as muitas bocas, com avidez, vão engolindo assimétricos personagens da flora, que se contorce, expressando formas de rara e rústica beleza e que, de certo modo, vão se confundindo com os vultos enegrecidos que, naqueles fornos, encerram o próprio destino.
Escolhera o progresso
um símbolo da fauna
pra cobrança do ingresso.
Foi eleito um leão,
o oficial provador...
das rendas do cidadão.
Causando certo desgosto,
os apetites desta mascote
das rendas tomara gosto.
Doendo muito no bolso,
as mordidas do leão
denominadas imposto.
Para acinte do cidadão,
a esfaimada mascote
associou-se à má gestão.
O execrável consórcio,
para males de pecados,
concebeu o mau negócio.
Desenvolveu, na tolerância,
os frutos de uma gestação:
da corrupção e ganância.
Primogênito, o desemprego,
a ignorância e exclusão,
a insegurança e o medo.
Impõem sobre a nação
os sacrifícios,
e a corrupção corroe os benefícios.
Celebrando a ganância,
a exploração madeireira,
na Amazônia, imola a diversidade
diante da omissão nossa de cada dia...
e dos poderes constituídos.
O cacique encomendou
grande olho de SIVAM
pra consorte do IBAMA
lá da corte de Tupã
Na fumaça ofuscou-se
graveto estala da chama
e o cisco incrustou-se
bem no olho do IBAMA
Areia caiu nos olhos
o Juruna proferiu...
o boto perde o charme,
é o mister M no Brasil...
Boitatá foi pra Parintins
caprichou e se garantiu
a Iara virou porta-bandeira
e o Brasil se descobriu
Saci virou um biscateiro
vira-se agora nos trinta
sambando o dia inteiro,
a SUDAM não assistia
A sombra da madeira empilhada
entre gracejos e protestos,
operários comem, contam causos,
anedotas... e depois cochilam...
Um menino retira
um arremedo de flauta de taboca do embornal
leva à boca e, dentre imagens fugidias de sonho,
assopra de improviso...
Na escola do sertão,
à grafite da fuligem,
escreve-se a redação
O dia — a pauta estica
em morosa rotação
o sol empina feito pipa
Volteia como o pião
suor destila em bicas
mina a seiva do sertão
Aprende-se na carvoaria,
na colheita da cana...
ou no barro da olaria...
Um "ó" de obrigação,
como primeira vogal
na escola do sertão...
Sentido de sobrevivência
é o quesito principal
que devora adolescências...
A educação é herança
que o pobre deseja legar —
é espólio de confiança
O sentimento paterno...
a consciência fustiga...
o lápis, livro, caderno...
A projeção do caminho
aponta uma periferia...
na mudança de destino
Virar-se no desemprego...
evitar os descaminhos...
mourejar no subemprego...
Servente de pedreiro...
coletor de reciclável...
ocasional biscateiro...
Matrícula-se o menino...
e nos progressos do filho,
olvida-se o seu destino...
E o menino se esforça —
engraxa parte do dia,
estuda e tem boas notas...
O vestibular é a fechadura...
o diploma do ensino médio,
a chave da formatura...
Nos portais da faculdade,
a chave do ensino público
trava na incompatibilidade...
Um pé de meia na América,
a alternativa deslumbra —
e a aventura se projeta...
Da poupança da família,
da venda de cacarecos
e de partes da mobília
Arremessada uma sorte,
desembarca no México
à procura de um coiote
Acertam de tal maneira —
dentro do porta-malas,
a passagem da fronteira
O deserto e a travessia,
um momento de bobeira,
e o menino se extravia...
Entregue à própria sorte,
o menino perambula,
aos gritos chama o coiote
O deserto é um forno,
o delírio é o pico...
na miragem do retorno
Um menino calcinado...
reencontra na carvoaria
o destino do cerrado...
E se cumpre um ditado:
nasce torto, morre torto...
esquecido e devorado...
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